domingo, 24 de abril de 2011

A Voz do Próximo


Quando ela se achou velha, calmamente resolveu pendurar as chuteiras (nos negócios do amor, nunca fora uma jogadora do primeiro time) e assumir a velhice com dignidade.
Então ouviu a voz do próximo:
"Que horror, mas como uma pessoa se entrega desse jeito, ficou até desleixada, presença negativa! De repente, parece que resolveu envelhecer e envelheceu tudo, sem nenhuma luta, isso só pode ser neurose, há de ver, quer provocar piedade, é uma punitiva!"
Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu reagir, lutar por uma imagem melhor. Fez plástica, pintou os cabelos, comprou roupas da moda e começou a namorar outra vez.
Então ouviu a voz do próximo:
"Mas que ridícula! Caindo de velhice e ainda querendo fazer charme, uma desfrutável! Já puxou a cara umas três vezes, se pinta feito uma palhaça, virou arroz-de-festa, ainda namorando um moço que podia ser seu filho! Devia se recolher, devia ir rezar!"
Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu se afastar da vida frívola, das vaidades deste mundo e na solidão decidiu entrar para um convento, quem sabe no convento se encontraria? E se encontrando, quem sabe encontraria Deus?
Então ouviu a voz do próximo:
"Depois de velho o diabo se fez ermitão! Vê se é possível uma vocação assim retardada, por que só agora essa mania de religião? Tudo mentira, afetação, vontade de ser original, imagine se vai durar... Quando descobrir que ninguém está ligando, deixa de bancar a santa. Pode ser também que esteja esclerosada... Pode ser isso: esclerose!"
Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu sair do convento e num dia de depressão mais aguda decidiu se matar. Mas queria uma morte silenciosa, sem chamar a menor atenção - se possível, sem deixar sequer o corpo, estava tão triste consigo mesma que achou que nem enterro merecia. Tirou a roupa para não ser identificada, dependurou na cintura uma sacola com pedras e entrou no rio.
Então ouviu a voz do próximo:
"Está vendo? A vida inteira ela só quis uma coisa, se exibir, se mostrar, uma narcisista até na hora em que cismou de morrer, imagine, entrar nua num rio! No velho estilo para provocar escândalo. Só para comover mas a mim é que não comoveu, ao contrário, fiquei decepcionada, que idéia de querer fazer da morte um espetáculo!"
Muito impressionada com o que ouviu (e ouviu tão mal, a voz do próximo longe demais, quase apagando), ela quis gritar de alegria, quis rir, rir - mas então era assim? - ô Deus! - e se preocupando com isso, perdendo a vida, que maravilha não ter morrido, quer dizer que alguém entrou no rio para salvá-la? Maravilha, coisa extraordinária, quer dizer quê... Mas onde estava agora? No hospital? Se estava ouvindo (ouvindo mal, embora!) é porque estava viva, pena não poder ver nem falar, o corpo também insensível, nem sentia o corpo mas se estava sentindo, hein?! Se estava ouvindo - e livre, para sempre livre, ah, como demorou para entender que os outros - ah, que demora para se libertar, nascer de novo!
Então ouviu a voz do próximo (desta vez, tão longe que ficou um sopro) pedir depressa a tampa, já estava passando da hora de fechar o caixão.

Um comentário:

  1. Eu estava atrás desse texto em todo o canto aqui pela net e só encontrei aqui no seu blog......
    Me ajudou muito gostei mesmo do blog Rogéria tá de parabéns ...........

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