Há saudades que caminham comigo
aconchegadas num lugar gostoso que a memória tem. Sei que estão lá,
mesmo quando demoro um bocado de tempo para apreciar as histórias que me
contam. São porta-jóias que guardam encantos que não morrem. Caixinhas
de música, que, ao serem abertas, derramam melodias que me fazem dançar
com elas de novo. São saudades capazes de amenizar o frio de alguns
instantes com os seus braços de sol. Mas existem também saudades que
pousam no meu coração de vez em quando e ficam de lá me olhando com
aquele olho comprido. Falam de lugares, pessoas ou épocas da minha vida.
São espelhos que refletem feições conhecidas. São saudades que entornam
perfumes que somente a alma reconhece. Que sobrevoam regiões por onde
apenas as emoções caminham. Que destampam ausências que a gente algumas
vezes prefere ignorar. São saudades de um mundo que tem cheiro de
quintal lá da infância da gente. Que é macio para todos os seres que nem
lençol recém-trocado. Que tem o timbre de voz amada quando toca o nosso
ouvido. Um mundo bacana onde as pessoas têm clima de passeio. Onde não
existem armas, visíveis ou não. Onde a gente vive com o sentimento de
estar brincando de roda uns com os outros: se um leva um tombo reflete
na roda inteira. São saudades de um mundo contente feito céu estrelado.
Feito flor abraçada por borboleta. Feito café da tarde com bolinho de
chuva. Onde a gente se sente tranqüilo como se descansasse num cafuné.
Onde, em vez de nos orgulharmos por carregar tanto peso, a gente se
orgulha por ser capaz de viver com mais leveza. Um mundo onde as pessoas
confiam umas nas outras, não pode ser de outro jeito se estamos em
família na humanidade. Um mundo onde a culpa deixou de ser uma desculpa
para não sermos felizes. São saudades de um mundo onde o respeito não
tem cheiro de mofo: todos somos iguais e todos somos diferentes e isso é
claro, natural e indiscutível. São saudades de um mundo que lembra a
pureza de amarelinha desenhada com giz no terreno da escola. Que lembra a
alegria de chegar no céu quando a gente pulava amarelinha. Que lembra a
melodia gostosa da risada do amigo. Saudades de um mundo sem
hipocrisia. Sem diz-que-me-diz-que. Sem jogo. Ninguém quer ferir
ninguém, por nenhum motivo. As boas intenções são mesmo boas. Há em cada
pessoa um cuidado, um bem-querer, um zelo amoroso, com relação a todas
as outras, porque essa é a natureza do coração humano. Um mundo onde
todas as formas de vida são abençoadas por todas as formas de vida. São
saudades de um mundo onde a gente pode falar de coisas inocentes sem
temer parecer ridículo. Onde podemos ser sensíveis e expressar a nossa
sensibilidade sem sermos olhados como vítimas de uma doença grave. Onde a
busca pelo conforto da alma é tão necessária quanto a busca pelo
conforto do corpo. Onde podemos caminhar pelas ruas, descontraídos, sem
temer ser atacados por outro ser humano. Um mundo no qual, em vez de
propagar o medo, as pessoas utilizam a sua energia para propagar o amor.
Saudades de um mundo que às vezes eu sinto tão intensamente que já
parece de verdade. Já parece existir, de alguma forma. Um mundo no qual
habito toda vez que eu o vejo.
(Para E.R.C)
(Ana Jácomo)
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