É incrível, mas um dia toda dor acaba. É como acordar sem febre depois
de noites de agonia. Você se pergunta, distraída: “Onde está a dor que
eu deixei aqui?” Foi embora, de repente, sem ser notada, sem alarde. Um
dia você percebe que alguma coisa parou de doer. Um dia você entende que
não precisa mais daquela dor. Um dia você sente preguiça de sofrer e
tem vontade de alongar a alma, estendê-la ao sol.
As dores acabam porque a vida é maior e mais teimosa.
Quando se está no olho do furacão, no fundo do abismo, velando um ente
amado, rolando na cama vazia, a dor parece eterna, presença maciça,
definitiva, que tudo ocupa e devasta. Ela fica ali, sentada no sofá,
servindo-se do jantar, pulsando na outra metade do leito, rondando sua
intimidade, compartilhando sua rotina. Lê seus livros, vai ao cinema com
você, amiga íntima, inseparável. Torna-se familiar, corriqueira.
Essencial. Reverenciada. A dor é um dublê que ocupa o lugar deixado pela
sua alma ferida, encolhida, retirada. Despojo de toda perda. Matéria
feita de ausências.
Quando se está em dor, a frase que mais se ouve é: “Vai passar... Nada
como um dia após o outro”. Ou então “o tempo cura tudo!” Naquela hora,
tudo soa ridículo, leviano, estúpido. Dá vontade de gritar, numa espécie
de arrogância e vaidade às avessas: “Você não conhece a minha dor. A
minha dor é a maior do mundo e nunca vai passar!”
Cuidado! A dor é aderente. Não se apegue demais, não se deixe seduzir.
As sombras não protegem, apenas escondem. Não se aprisiona a dor sem
tornar-se prisioneiro dela. A dor pode virar um vício. Uma grande
justificativa. Uma explicação respeitável. O inferno consentido. Um
destino e não um caminho. O tumor alimentado com diligência. O veneno
tomado solenemente.
A dor que não é doença tem prazo de validade. Cumpre um ciclo. É
percurso, mal necessário, remédio amargo. Expurgo. Esconjuro. Depuração.
Quando ela acaba deixa um vazio, um descampado que será aos poucos
inundado pela sua alma alargada, reintegrada que se espalhará como maré
alta e tudo contemplará.
As grandes dores parecem inesgotáveis, insaciáveis. Mas mesmo as dores
indizíveis, aquelas das perdas impronunciáveis, as dores abissais que
contrariam as leis da vida, mesmo essas um dia passam. Param de fisgar,
de sangrar. Cansam, aquietam. Libertam-se de nós e viram cicatrizes,
marcas, tatuagens.
É comovente e belo trazer no corpo e na alma as marcas das dores bem
vividas. Nada mais natural que fazer as pazes com nossas dores.
Deixá-las partir sem medo. Lembrá-las sem sobressaltos. Reconhecê-las.
Afinal, “nós também somos o que perdemos”.
Texto de Hilda Lucas.
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